quarta-feira, 17 de abril de 2013

A maioridade penal e o colunista que decidiu fuzilar o bom senso. Ou: Não misture Cioran com dobradinha!


Marcelo Coelho, colunista da Folha, escreve hoje um artigo em seu blog sobre a questão da maioridade penal. Está lá desde as 3 da manhã, com um comentário apenas. Sei que ele deve ser dos preferem qualidade a quantidade. Na hipótese de que o texto seja bom, por que não torná-lo público, não é mesmo? Decidi trazê-lo à luz. Ele até vai bem, com certa ponderação, demonstrando a fraqueza dos argumentos dos que são contra a redução a maioridade penal de 18 para 16 anos (ele também é).  É um jeito de pensar. Coelho desmoraliza os argumentos dos seus próprios companheiros, mas não diz quais seriam os bons. O incauto chega a pensar que ele também quer mudar a lei. Longe do estéril turbilhão da rua, o Beneditino de Olavo Bilac escrevia. Com paciência e sossego, trabalhava, e teimava, e limava, e sofria e suava… Não Coelho! O colunista perdeu a paciência. Deve ter ficado com fome. Sei como é. Passo as madrugadas escrevendo. É preciso resistir a quatros tentações: a) ao assalto à geladeira (e ao chocolate e à Negresco comprados para as crianças…); b) ao assalto das soluções fáceis para problemas difíceis; c) a resolver tudo com uma citação encoberta que leva o leitor a suspeitar de que você é mais profundo do que parece: c) ao “vai assim mesmo”, já que me perdi… Não tendo sido a alternativa “a”, Coelho sucumbiu à “d”. Depois de ter desmoralizado os argumentos de seus próprios companheiros, produziu o seguinte parágrafo (em vermelho), que submeterei ao escrutínio lógico:
“Quem pede leis mais rigorosas simplesmente usa um eufemismo: queria que todo criminoso fosse fuzilado. Quem é contra leis mais rigorosas sabe que, na verdade, as que existem são outro eufemismo. Falam em “instituição correcional”, em “presídio”, quando deveriam dizer “campo de concentração”, “pocilga”, ou “masmorra”. Antes, dizia-se “Carandiru”.
Pena para o bom senso Coelho não ter atacado a Negresco em vez de ter escrito essa enormidade. Então vamos ver. Duzentos e quarenta e nove anos depois de Cesare Beccaria ter escrito “Dos Delitos e das Penas” para nos lembrar, e é um fundamento quase universal do direito, que há de haver uma relação de proporcionalidade entre a pena aplicada a um criminoso e o agravo por ele praticado contra a sociedade, Coelho teve o seu momento “fiat lux” e descobriu que falar em pena mais rigorosa para um crime ou outro é só uma outra maneira de pedir o fuzilamento. Que gênio da raça! Que pensador delicado! Aos 26 anos (quando escreveu, tinha menos), Beccaria se estendeu sobre os matizes das penas justamente para que não se matasse a esmo; justamente para que o desagravo não fosse, então, mero exercício de crueldade e vingança. Na página 81 da edição que tenho aqui à mão, leio:
“(…) se dois crimes que atingem desigualmente a sociedade recebem o mesmo castigo, o homem inclinado ao crime, não tendo por que temer uma pena maior para o crime mais monstruoso, decidir-se-á mais facilmente pelo delito que lhe seja mais vantajoso, e a distribuição desigual das penas  produzirá a contradição, tão notória quanto frequente, de que as leis terão de punir os crimes que fizeram nascer”.
Para Coelho, Beccaria era um bestalhão, vejam vocês!,mesmo quando escrevia coisas como esta: “Quando as penas tiverem se tornado menos cruéis, a clemência e o perdão serão menos necessários”. Bobagem! Para o nosso pensador, mesmo quem é contra leis mais rigorosas está, no fundo, condescendendo com campos de concentração e masmorras. Não há saída para o homem. Pedir pena maior é coisa de fuziladores encobertos. Pedir pena menor é apanágio dos cínicos. Que madrugada atormentada! Coelho deve ter passado a noite lendo Cioran depois de ter comido muita dobradinha com Fanta Uva… O que parece pensamento pode ter sido só um sonho ruim. A digestão fica mais lenta depois dos 50, sei bem. Poder-se-ia inferir que não sendo virtuosos, então, o homem que quer pena maior nem o que quer pena menor, que a virtude, para Coelho, está no meio (virtus in medium est). Mas também não! Porque, no meio, estão as leis que temos, com os presídios que temos. Então fazer o quê? Em seu texto, ele referenda a necessidade de mais educação — repetindo o erro muito comum das esquerdas ilustradas latino-americanas que tendem a confundir cadeia com escola… No fim das contas, sempre se está de volta, quando a conversa é essa, a Rousseau, o “castelão e vagabundo”, segundo quem o homem é um gaveta, e a sociedade responde pelo conteúdo que lá vai. Se criminoso ou virtuoso, pouco importa, ele não tem escolha. E depois dizem que o catolicismo, com a sua fé no livre arbítrio, é que é reacionário. A visão de mundo que está na origem desse misto de Cioran com buchada de bode é a velha e nefasta engenharia — ou reengenharia — social: destituídos de vontade, incapazes de fazer escolhas, meros produtos passivos do que a sociedade perversa fez com eles, os homens precisam, então, de algo ou de alguém que lhes dê direção. Todos os ditadores e todas as tiranias sempre se aproveitaram do miolo mole de supostos humanistas como Coelho para dizer: “Deixem com a gente; sabemos como fazer”. Aí, em nome do “novo homem”, do “homem produto do meio”, da “justiça social que elimina as diferenças”, mataram milhões e mandaram seus adversários para “campos de concentração, pocilgas e masmorras”. Vejam lá o taradão da hora da Venezuela, fuzilando pessoas nas ruas em nome do bem e da virtude. “O direito de punir não pertence a cidadão nenhum em particular, pertence às leis, que são os órgãos da vontade de todos. Um cidadão ofendido pode renunciar à porção desse direito, mas não tem nenhum poder sobre a dos outros”.
É Beccaria, o bestalhão, não Marcelo Coelho, o gênio da raça. Só existe democracia porque existem penas para os delitos. “Não é assim também nas ditaduras, Reinaldo?” Não! As ditaduras não precisam de delitos para que existam as penas. Elas só precisam falar em nome de um projeto, de uma aurora, de um novo amanhecer — a “igualdade”, por exemplo… No Paraíso, na Cidade de Deus, não é assim. Não existem nem pecado nem perdão. Nem delitos nem penas. Assim é na Cidade dos Homens. Por Reinaldo Azevedo

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