domingo, 26 de maio de 2013

O Complexo do Alemão e o complexo da imprensa. Ou: Afinal, para que servem os jornalistas?

Os traficantes voltaram a dar, explicitamente, as ordens no Complexo do Alemão. Na verdade, nunca deixaram de fazê-lo. O comércio foi fechado na quinta-feira, e quase 12 mil crianças ficaram sem aula. A se dar crédito ao discurso oficial e ao oficialismo que tomou conta de setores majoritários da imprensa nesse caso, isso não deveria ter acontecido. Supostamente, já se havia superado essa fase; já se estava num outro patamar. Sim, os meus críticos têm razão num particular: “Você fica aí sentado na sua cadeira; nunca foi ao Alemão para ver de perto a vida das pessoas!”. É verdade! Nunca fui. Sabem a importância que isso tem? Nenhuma! Zero! Respondo a essa restrição com um caso extremo, para ser didático: um correspondente de guerra que coloque as bombas da hora acima da história e da lógica fará um péssimo trabalho. Estará vivendo o conflito quase na carne sem entender nada. O caso da Síria, em curso, é ilustrativo. Demorou um tanto até que se percebesse que o carniceiro Bashar Al Assad está sendo confrontado por forças que consagram, desgraçadamente, os métodos do… carniceiro Bashar Al Assad!!! E quem impediu o mundo de enxergar isso com clareza, infelizmente, foi gente que estava lá. Experimentar a realidade pode ser um caminho muito curto e convincente para o equívoco. Nascemos, é verdade, como tabula rasa, mas a segunda amamentação já começa a nos irrigar de relações causais e lógica. O verdadeiro aprendizado é aquele que se transforma em conceito. Há várias maneiras de exercer uma determinada atividade profissional, e isso sempre depende do propósito que se tenha. Jornalismo, por exemplo! Destaco duas, nenhuma delas dolosa — como veem, excluo de saída os que são pagos com dinheiro público para exercer o gênero encomiástico e para difamar os inimigos da Coroa. A imprensa pode, diante de um determinado caso, qualquer um, fazer uma abordagem crítica, independente, ressaltando os aspectos positivos (se houver) de uma determinada medida oficial, e os negativos, se houver também. É claro que os sinais de “mais” e de “menos” têm um ponto que serve como referência. Afinal, como é sabido e como está consagrado nas democracias, veículos de comunicação — e, nos tempos da Internet, sites, blogs, portais etc. — têm uma linha editorial. Fiquemos num caso já clássico: devemos ter menos ou mais estado na economia? Alguns preferirão a resposta dada por Deng Xiao Ping, como exemplo máximo do pragmatismo virtuoso: “Não importa a cor do gato; o importante é que cace ratos”. Parece bom, mas não é! Se o gato exigir ser dono da casa para caçar ratos, então não é um bom gato. No caso da China, a eficiência do bichano só é possível porque o regime é tirânico. A eficiência de uma tirania é algo com que devamos nos conformar? Escolhas, escolhas… Eu, por exemplo, acho que não. Prefiro o regime de liberdades públicas dos EUA, ainda que a democracia traga consigo algumas, como chamarei?, deseconomias. O livro-caixa é um instrumento do estado democrático, não o seu senhor. Falei até agora de uma postura, a crítica — aquela que é feita segundo a ótica de quem não é poder. Entendo ser ela um dos pilares da democracia. Há uma segunda, que, reitero, também é não dolosa: é a colaborativa, a engajada. Nesse caso, o papel da imprensa seria o de linha auxiliar do estado. Em vez da crítica, considerada constrangedora, por que não a abordagem senão elogiosa, mas afirmativa ao menos? Afinal, se todos queremos o bem do Rio, do país, da humanidade, há de haver entre nós o lugar do consenso. Muita gente, de boa-fé, sem qualquer ânimo para a censura, reprova o papel da imprensa, que sempre estaria interessada na má notícia, nos aspectos negativos da realidade, porque, dizia-se antigamente, quando esta era uma questão pertinente, “vende mais jornal”. A ilação embutia um pressuposto: o de que o leitor tinha um lado masoquista — eventualmente sádico no caso de que a má notícia não lhe dissesse respeito. Participei, há muitos anos, de uma tertúlia profissional, equivocada desde a convocação, para que se debatesse esse assunto. E se chegou, então, a uma formulação editorial que vinha até com uma chancela gráfica: “Boa Notícia”. Vale dizer: incorporava-se como verdade a crítica infundada de que a “má notícia” era o nosso filão principal e de que seria preciso treinar o olhar para importunar menos o leitorado, eventualmente as “otoridades”, com assuntos desagradáveis. É claro que foi um tiro n’água. Os meios estavam errados, e os meios sempre qualificam os fins. Um jornalismo que vivesse, ainda que com bons propósitos, da mera justificação do presente não tardaria a incorporar, ele mesmo, a lógica do poder. Em vez de exercitar um conjunto de valores, passaria a ser o administrador de um conjunto de estratégias para, então, preservar O poder e se conservar NO poder. Não tardaria a considerar que todos os males do mundo — ou, vá lá, do país — decorreriam do dissenso; da ação deletéria de pessoas ou grupos que, em vez de colaborar com o bem comum oficialmente definido, dedicam-se à sabotagem. Não é uma tentação que esteja apenas na cabeça dos estúpidos e dos venais. Um homem inteligente e inegavelmente talentoso como Máximo Gorki justificou e aplaudiu todos os crimes de Stálin. Escreveu um livro exaltando, por exemplo, a construção de Belamor, o canal entre os mares Báltico e Branco. Foi feito com a mão de obra escrava dos prisioneiros. Nada menos de 170 mil pessoas! Vinte e cinco mil morreram em um ano e meio… Gorki acreditava sinceramente no socialismo… A honestidade da convicção não faz a boa obra. Se o jornalismo abre mão da crítica, contribui para a esclerose do poder. O consenso é, nas democracias, o que a censura é nas ditaduras. Lidei, até agora, com ideias gerais, com valores, com conceitos. A minha crítica, insistente e persistente, ao modelo de segurança pública adotado no Rio de Janeiro não tinha e não tem origem no simples ânimo da discordância, na divergência como fetiche ou alegoria de mão. Tampouco decorre de alguma restrição de natureza ideológica — embora eu ache legítimo o debate ideológico, deixo claro. Levar o estado ao território ocupado pelo narcotráfico é, para mim, uma questão de princípio. Os arquivos estão aí. Os textos que escrevi antes mesmo da existência deste blog estão devidamente impressos. Eu os tenho todos. Quero-me um dos primeiros que lançaram justamente a questão da “recuperação do território”. Os morros do Rio e a periferia de algumas grandes cidades do Brasil eram — ou são ainda, no mais das vezes — “países” dentro de um país, regidos por leis particulares. Não fosse assim, o tráfico não decretaria o fechamento do comércio e das escolas, como voltou a fazer no Complexo do Alemão. Nunca me opus, por óbvio, à chegada das ditas “unidades pacificadoras” às favelas do Rio — que o eufemismo influente passou a chamar de “comunidades”. Não gosto, e escrevi isso desde o primeiro dia, do nome. “Unidade pacificadora” por quê? Vai se celebrar a paz entre quem e quem? Quem é o “outro lado” admitido, então, como interlocutor aceitável no acordo — já que “a paz” supõe, necessariamente, a concordância entre as partes? O nome é ruim porque traz, implícita, a ideia de que se reconhece o narcotráfico como força beligerante legítima. Conceitualmente, o que se está a fazer é admitir que a realidade “de fato” constitui a realidade possível. E, obviamente, não posso concordar com isso. Uma polícia nunca é “pacificadora”, então. Ela deve ser a encarnação da ordem democrática. Ela é, como já escrevi aqui, a democracia que veste uniforme e que tem o monopólio, entre os civis, do uso da força. Por que a questão conceitual é importante? Porque ela enseja uma prática. Ao se admitir que uma polícia “pacifica”, em vez de reprimir o crime, admite-se também que os traficantes — ou aqueles que se beneficiam da desordem — não precisam ser punidos por seus atos porque isso, afinal de contas, seria investir na guerra, no confronto, num modelo supostamente velho de segurança pública, com resultados comprovadamente perniciosos. Ora, o que estava errado, antes, não era o confronto com o crime, mas a prática de incursões nos morros para, depois, deixar a população ao deus-dará. O que estava errado — e este problema ainda não foi resolvido — era a corrupção policial. E não só no Rio de Janeiro, é evidente. O que sempre critiquei, de maneira quase isolada, e continuo a criticar, é o fato de a “pacificação” do Rio trazer consigo a prática — nefasta, deletéria, absurda — de espantar bandidos em vez de prendê-los. Ou, então, de permitir que continuem a exercer suas atividades criminosas, desde que não aos olhos do público. O que previ — E, REITERO, OS ARQUIVOS ESTÃO AÍ — desde o primeiro momento está em curso: não tardaria para que as unidades de segurança do estado passassem a conviver com o crime organizado numa espécie de pacto de não agressão, eventualmente quebrado quando “radicais” de um lado ou de outro exorbitam, vão além daquilo que foi pactuado. Ora, os criminosos mais notórios que são desalojados das “áreas pacificadas” vão, é claro!, aterrorizar as não pacificadas — e há mais de 1.200 “comunidades” no Rio! Quantas contam com UPPs? Vinte poucas? Niterói que o diga. Um bando de criminosos fugidos de favelas do Rio foi preso no Paraguai. Ainda que pareça estúpido fazê-lo, é preciso deixar claro: sou crítico dos aspectos deletérios da política de segurança, não do que há de virtuoso nas escolhas feitas. Mas não só isso: também sou crítico de uma certa visão deslumbrada, marqueteira, propagandística, de que se encontrou uma “nova forma” de combater a violência. As UPPs, propaganda e aspectos negativos à parte, nada mais são do que policiamento preventivo e comunitário. A novidade, no caso, está no fato de esse policiamento ter chegado àquelas áreas, coisa que se deve aplaudir. O Rio não inventou nada de novo — está cumprindo uma obrigação do estado. E, obviamente, reconheço o esforço nesse sentido. Mas continuo a achar insano o entendimento de “pacificação” que se traduz também numa política deliberada de não prender criminosos — a não ser em casos excepcionais, que rendem holofotes. É claro que essa escolha se dá num momento em que o lobby em favor da legalização das drogas — já não é mais da simples descriminação — assume uma força inédita na imprensa. Nesse caso, as palavras de “paz” de José Mariano Beltrame e Sérgio Cabral soam como música aos ouvidos, pulmões, lábios, narizes… Noto que se vai formando um “consenso” em favor de uma legalização que, atenção!, não existe em lugar nenhum do mundo, nem na Holanda, para citar o caso extremo da liberalidade. Os marginais que ainda assombram as “comunidades” seriam, nessa versão, apenas “pequenos traficantes”, que só pressionariam e onerariam o sistema prisional se fossem trancafiados. Nessa perspectiva, eles seriam, antes de mais nada, vítimas de um modelo caduco de combate às drogas. Se elas fossem legais, a realidade seria outra. Assim, esses supostos empiristas insistem em saber como seria um mundo em que tudo fosse permitido. Destituídos de um pensamento econômico elementar, não se dão conta de que aqueles que escolhem atuar no tráfico, pequeno ou grande, escolhem um atividade mais rentável do que a remuneração de um trabalho legal. Se a venda de entorpecentes, então, fosse legal, também a remuneração dos que se dedicassem a esse ramo cairia, nivelando-a, sei lá, com a recebido por quem vende sorvete ou sanduíche. Ocorre que que aquele que escolheu o tráfico não estava contente com seu nível de renda nem enxergou, na legalidade, uma alternativa ou um caminho para um ganho suplementar. Antes de optar pelo tráfico, meus caros, ele optou pelo crime. Se as drogas forem legais, escolherá outra atividade criminosa que remunere adequadamente as suas ambições e o seu risco. Não é a ilegalidade de substâncias que faz os criminosos; os que decidem delinquir encontram nela um caminho. Se não estiver disponível, eles se decidirão por outro: crimes contra o patrimônio, latrocínios, exploração sexual, imaginem aí… O que alimenta o ciclo da criminalidade não é a ilegalidade da droga, mas a impunidade — seja lá qual for o delito praticado. E haveria, é certo!, o desastre social e de saúde pública decorrente da legalização, com a maior exposição de crianças e adolescentes a drogas que predispõem os usuários para o tudo ou nada. O aumento de latrocínios no Brasil inteiro, podem apostar, decorre da epidemia do crack. Volto ao leito. Num momento, pois, favorável à legalização das drogas, uma política como a do Rio — que entende a “pacificação” como o não confronto com o crime; que se orgulha de “ocupar comunidades” sem enfrentamento com a bandidagem — surge como a resposta supostamente inatacável, consensual, de mero bom senso, ao problema da violência. Ela só desagradaria a pessoas como eu — e mais a uns dois ou três — que nunca estão contentes com nada; que preferem “falar mal” a colaborar; que escolhem apontar problemas em vez de aplaudir soluções; que são movidas pelo espírito de porco do dissenso, não pelas virtudes do consenso. Pois é… Poderia responder como naquela música: “Esse cara sou eu…”. Mas não serve. Em primeiro lugar, há mais divergência na sociedade (ainda que os partidos de oposição não o percebam…) do que supõe o coro dos contentes — e são muitos “os caras e as caras”. Em segundo lugar, mas não menos importante, considero, como queria Drummond, “a enorme realidade”. Os episódios recentes no Complexo do Alemão me dão — e a outros que preferiram o caminho do dissenso — razão. E já que falei no poeta: “O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente”. No fim das contas, a gente até pode perguntar: “Mas para que servem os jornalistas?”. José Dirceu, por exemplo, tem ideias muito claras a respeito. Por Reinaldo Azevedo

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