terça-feira, 1 de outubro de 2013

ESTADOS UNIDOS, OBAMA, TEA PARTY, GOVERNO PARALISADO, APOCALIPSE ETC E TAL.... COM A DEVIDA VÊNIA, EXCELÊNCIAS, MAS VOU DISCORDAR. OU: DEMOCRACIA PRA QUÊ? OU AINDA: SERÁ QUE OS ESTADOS UNIDOS PRECISAM DA PISTOLAGEM PARTIDÁRIA BRASILEIRA?

Vamos percorrer caminhos difíceis porque os fáceis são fáceis. Muito bem! Se o mundo parece pensar, unanimemente, que os republicanos, nos Estados Unidos, são uns sabotadores da democracia e que o Tea Party está além da fronteira do que pode fazer um grupo de oposição, eu, por meu turno, começo a pensar uma de duas coisas: a) ou estamos, então, diante de uma nova expressão do Mal Absoluto — e, portanto, essa gente tem de ser banida da política em nome da democracia, ou b) há um evidente exagero nas críticas e uma incompreensão dos instrumentos que fornece a própria democracia para a luta política. No parágrafo seguinte, tem início uma digressão que, não obstante, nos aproxima mais do tema. 

Olhem o mundo. Não fui ticando no mapa-múndi caso a caso, mas suponho que democracias verdadeiras, dignas desse nome, ainda são uma minoria. Parcela considerável do planeta vive sob ditaduras religiosas — islâmicas, para ser mais preciso (não há, nessa modalidade, outras, de credo distinto). Outro tanto, especialmente na África, está submetido a regimes de força de caráter étnico, que nada tem a ver com a cor da pele, é bom que fique claro: são negros oprimindo negros. E há ainda tiranias que vestem uma máscara ideológica, como é o caso da China. Se usarmos o critério das populações, a maioria da humanidade ainda vive sob regimes de força.
No chamado mundo democrático (ou quase), uma nova forma de autoritarismo se espraia. A América Latina abriga as suas expressões mais rombudas — bolivarianismo e lulo-petismo, distintos entre si, mas combinados —, mas não tem o monopólio desta modalidade de ódio à democracia de que vou tratar. Em que consiste? Escolhas ideológicas, políticas, que remetem à esfera dos valores e, muitas vezes, dos direitos individuais são tratadas como imperativos categóricos, matéria de bom senso, desdobramento óbvio de leis naturais, matéria de civilidade. Opor-se a elas deixa de ser, vá lá, uma escolha ou opção erradas, mas uma sabotagem, uma forma de perversidade, uma manifestação de atraso, de preconceito, de reacionarismo, incompatíveis com a suposta disposição da humanidade para o bem, para o belo e para o progresso. “Dê um exemplo, Reinaldo.” Pois não! Pegue-se, por exemplo, a política de cotas raciais nas universidades brasileiras. Tenta-se fazer crer que é impossível discordar da medida se não for por maus motivos; elas seriam um ponto inscrito numa trajetória rumo ao bem. Querem outro? Há um trabalho intenso de lobbies organizados para que a descriminação das drogas se transforme numa evidência caída da árvore dos acontecimentos, que não atenderia a nenhum outro interesse que não o bem da humanidade. É normal e é parte do jogo que os defensores de uma determinada proposta tentem, digamos assim, naturalizar as suas escolhas. O que não é aceitável — e isto, precisamente, agride a democracia — é que a divergência, especialmente quando dentro das balizas da legalidade e do estado democrático e de direito, seja satanizada como coisa de sabotadores. Nesse caso, sob o pretexto de se defender o bem, o que se faz é satanizar a própria democracia. Fim desta digressão e voltemos ao caso em espécie.
De volta aos EUA
O governo americano está, noticia-se, “paralisado” porque a maioria republicana da Câmara não conseguiu chegar a um consenso com a maioria democrata do Senado (mais Barack Obama) sobre a elevação do teto da dívida federal. Vamos ver. Há uma grande diferença entre, eventualmente, lastimar a decisão dos republicanos, especialmente da sua ala mais dura, o Tea Party, e agredir, como tenho lido, o que considero a essência mesma do jogo democrático. Não seria, então, o caso de questionar se agiu certo o legislador primordial quando atribuiu ao Congresso a competência para dizer “sim” ou “não” a essa elevação, com as suas fatais consequências num caso e noutro? O que é que está errado nos EUA, segundo os que se desarvoram com o impasse? A, vá lá, intransigência dos republicanos ou o modelo? Se alguém disser que é o modelo, vou discordar frontalmente, mas considero uma posição intelectualmente aceitável, embora perigosa. Ainda que eu conteste tal opinião, acho compreensível que se defenda que matéria orçamentária deva ser monopólio do Executivo. Se, no entanto, me disserem que nada há de errado com o modelo, e sim com os republicanos, aí sou obrigado a classificar tal opinião de intelectualmente inaceitável porque contrária aos princípios que ela própria enuncia. Se cabe ao Congresso dizer “sim” ou “não” à elevação do teto da dívida, descarte-se como absurda a suposição de que só o “sim” é aceitável. Ora, a condenação em princípio da posição adotada pelos republicanos não pode conviver com a defesa do modelo sem que o analista incorra numa hipocrisia. As coisas não são assim porque eu quero; são assim porque um analista está obrigado a pensar segundo critérios racionais e lógicos. “Está?” Claro que sim! Ou vá abrir um tenda para ler Tarô.
Sim, conheço
Sim, conheço todas as consequências da chamada “paralisação” do governo e tenho lido o que isso pode significar de custo para a economia do país, para os americanos em particular e para o mundo no geral. Mas cabe uma outra pergunta importante: esse impasse foi fabricado apenas pelos republicanos e deve ser especialmente jogado nas costas do Tea Party? Barack Obama, o presidente dos EUA, não responde, em parte por isso? Basta ler o noticiário para saber que sim. “Ah, mas não é aceitável que os republicanos usem o programa de assistência à saúde proposto pelo presidente como moeda de troca!” Por que não é? Vamos pensar um pouco em Banânia… A seguir nesse ritmo, em breve, ainda seremos levados a concluir que o que falta mesmo nos EUA é, deixem-me ver, um PMDB, um PR, um PSD, um PP, um PROS (?), um outro PQQ qualquer, com o qual o Poder Executivo possa “negociar” — ou, se quiserem que eu coloque as coisas em termos mais justos: vai ver falta a Obama um sistema político que possa ser comprado, não é mesmo? Ora, se agiu com sabedoria o legislador americano quando delegou ao Congresso a tarefa de dizer “sim” ou “não” à elevação da dívida, nessa sabedoria estava inscrita a possibilidade de se dizer “não”. “Ah, não venha você com legalismos, quando o governo federal está parado!” Eu não venho com legalismo nenhum! Comparece ao debate com a lei e com o direito que a oposição tem de fazer oposição. A democracia americana segue sendo, em muitos aspectos, exemplar — inclusive na garantia da alternância de poder, o que as ditaduras e protoditaduras repudiam — porque se garante o direito à divergência e porque os Poderes da República exercem plenamente as suas prerrogativas. Aqui e ali, chego mesmo a ler que uma conspiração de direitistas brancos está tentando desestabilizar o governo do negro Obama. É um argumento que fica abaixo da linha da vulgaridade. Na última vez em que o governo federal parou, o presidente era o branquelo Bill Clinton. Trata-se de uma acusação ridícula. A força da democracia americana está no exercício de prerrogativas. No Brasil em particular, estamos acostumados a um Congresso que ou vive de joelhos ou vive fazendo “negócios” com o Executivo. Também estamos acostumados a uma oposição que quase se obriga a pedir desculpas quando contesta o Executivo, tendo de provar que não é sabotadora. Não é de estranhar que republicanos e Tea Party deixem, por aqui, tanta gente chocada.
Para encerrar
Mais de uma vez, apontei o caráter, digamos, terceiro-mundista de Barack Obama. E, como deixei claro então, essa observação nada tinha a ver com com a cor de sua pele, com a sua origem e tolices afins. O lado bananeiro do presidente americano se traduz justamente na sua disposição de satanizar a oposição, de transformar a divergência numa expressão de sabotagem. Segundo a sua turma, a resistência dos republicanos se deve a questões meramente ideológicas… Errado. A resistência dos republicanos, concorde-se ou não com ela, se deve ao fato de que são congressistas, de que exercem uma prerrogativa e de que representam, como Obama, uma fatia do eleitorado. E isso só quer dizer que o Poder Executivo, nos EUA, terá de negociar com o Poder Legislativo. Na Venezuela, na Bolívia, no Equador, na Nicarágua, em Cuba, na China e na Rússia, para citar alguns casos, nada disso é necessário. Por Reinaldo Azevedo

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