sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

DE NOVO, PORTA DOS FUNDOS - UM VERMELHO-E-AZUL COM UM LEITOR QUE DISCORDA DE MIM E ACUSA O "FASCISMO ENVERGONHA DOS OFENDIDOS"

Um leitor chamado Guto Luz me manda um texto gigantesco contestando o que escrevi sobre o Porta dos Fundos e o direito que têm os cristãos de recorrer à Justiça. Argumenta bem e perigosamente. Atenção: eu escrevi “bem” E“perigosamente”. São advérbios coordenados. Eu NÃO disse que argumenta “perigosamente” PORQUE “bem”. Segue o que ele escreve em vermelho. Respondo em azul.

*
Reinaldo, neste artigo, diferentemente de quase tudo o que v. escreve, v. me pareceu desprovido de paixão, quase envergonhado. Pareceu-me, por um lado, preso ao imperativo de ter que defender a imprescindível e inegociável liberdade de expressão, por outro tateando nas entrelinhas para passar uma mensagem que flerta com o lado oposto. Daí, a coisa toda ficou parecendo contorcionismo na corda bamba!
Bem, acho que você falhou na investigação da minha psique, mas não tenho como demovê-lo. O meu texto é claro como a luz do dia:
a: o Porta dos Fundos faça o que quiser;
b: os cristãos têm o direito de protestar e de recorrer à Justiça;
c: eu critiquei aqueles que estavam pondo em questão esse direito, protegido pela Constituição. O resto, com todo o respeito, é psicologização barata.
Dá pra perceber que você faz um esforço danado para não dar a entender que não respeita o princípio da liberdade de expressão, mas ao mesmo tempo que está buscando achar um jeito de tentar justificar essa coisa absurda e perigosa (e que é de fato uma posição essencialmente política) de que religião é uma coisa que tem (ou merece ter) esse status de coisa “sagrada”, incriticável.
Devagar com as palavras! A religião é um fenômeno social que lida com o sagrado. O “sagrado” é um domínio da vida em sociedade que pode ser compreendido também pelos não crentes. Sim, é uma realidade igualmente política, que assume a dimensão de resistência em muitos lugares. O cristianismo, aliás, tem uma bela história no capítulo das resistências — ainda que os detratores pretendam o contrário. Aí é preciso estudar um pouco.
Ocorre que você lê coisas que não estão no texto, mas apenas em seus preconceitos. Aponte uma única linha que sugira que a religião não pode ser submetida ao humor, ao debate, o que seja. Eu apenas lembrei que existem medidas — porque há medida em tudo. Quem as ultrapassa submete-se às reações dos ofendidos. É simples.
O que você pretende? Gostaria de ver aprovada uma lei que impedisse os cristãos de reagir DENTRO DAS NORMAS DA DEMOCRACIA? “De hoje em diante, os crentes ficam proibidos de tentar processar os humoristas…” Ora, Guto, tenha paciência! Eu sou cristão, e nada daquilo me ofendeu. Quando comecei a achar o troço burro, sem graça, feito só para “causar”, parei de visitar o site. Mas eu não me coloco como exemplo de nada.
Ora, as religiões sempre tiveram muito mais respeito do que fizeram por merecer. São as únicas ideologias do planeta que ainda insistem em usar a carta marcada do “estamos ofendidos” para tentar calar as vozes críticas. Isso quando não recorrem a métodos mais explícitos e brutais de supressão da opinião divergente.
Releia a sua primeira fase desse parágrafo. É só juízo de valor, sem história. Os cristãos de Darfur merecem ainda menos respeito do que lhes dispensam as milícias muçulmanas? Como? Só as religiões dizem “estamos ofendidos”??? Você só pode estar brincando. Supostas minorias organizadas, hoje, na Internet, policiam tudo. E recorrem à Justiça. Eu mesmo sou crítico desses movimentos, mas você nunca me viu aqui a dizer que eles não têm o direito de protestar. Direito tem; se a Justiça vai ceder, aí é outra coisa. No Brasil, a que outros “métodos mais explícitos e brutais de supressão da opinião divergente” recorrem os cristãos? Não conheço nenhum. Você poderia apontar, por favor? Mas eu posso lhe dizer os métodos a que recorrem, por exemplo, os muçulmanos para matar 100 mil cristãos por ano.
Sugiro a você alguns experimentos mentais: (a) Imagine um defensor do livre mercado dizendo em público: ‘o ideário socialista é imbecil, assassino’. Isso pode ser considerado desrespeito aos socialistas ou é a livre exposição de ideias?
Não com essas palavras, mas com este conteúdo, eu já escrevi muitas vezes que o ideário socialista é imbecil e assassino. Se algum socialista quiser me processar por isso, que fique à vontade. Jamais vou questionar o seu direito de fazê-lo.
(b) “Num debate acadêmico, o proponente do modelo A diz para o defensor do modelo B: ‘sua teoria é ridícula’”. Algum professor ofendido?
Certamente haverá algum professor ofendido. Direito de entrar a Justiça, ele tem. Não recomendo, no entanto, que o faça.
(c)“Na TV, o proponente do “novo paradigma na psicologia” afirma que os ‘psicanalistas são parasitas de seus pacientes’”. Um psicanalista pode tomar isso como ofensa pessoal? Se em todos os casos acima, cada uma das partes tem o direito de expressar suas ideias livremente e não imagino ninguém querendo processar ninguém por causa disso, por que os casos envolvendo religião deveriam ser tratados de forma diferente?
No campo da psicologia, isso acontece, mas, digamos, “do outro lado”. Nunca existiu, por exemplo, um projeto de cura gay no Brasil. Isso é uma fraude escandalosa. Todo o debate se deu em razão de um trecho de uma resolução do Conselho Federal de Psicologia que patrulha o trabalho do psicólogo no consultório e pode cassar o seu registro se achar que ele não age conforme. Não existe nada igual em nenhum lugar do mundo. Mas tenho a impressão de que você concorda com aquele texto…
Por que podemos aceitar tranquilamente que alguém possa dizer que socialismo – por exemplo – é uma ideologia para “idiotas” e “canalhas”, mas ninguém pode dizer o mesmo sobre o Cristianismo?
Quem disse que não pode? Pode.
Para mim, seu texto falha principalmente quando pretende desviar a atenção do leitor para espantalhos, no caso, toda essa discussão sobre a suposta falta de coragem para criticar o Islã ou a postura do NY Times nesse ou naquele caso. Cortina de fumaça. Se o Cristianismo É a ideologia predominante por aqui, qual seria o sentido de fazer humor sobre o Islã no Brasil? Nada mais inócuo. Rir da burca, pra nós, não tem qualquer implicação política ou social. Portanto, que o Porta dos Fundos não se ocupe disso não é questão de covardia, mas de contexto.
Em primeiro lugar, no trecho em questão, eu comentava o conteúdo de uma entrevista concedida por um dos membros do Porta dos Fundos — e citei posturas semelhantes da BBC e do NYT. A questão ilustrava um debate de fundo: “Qual é o limite do humor?”. A gente entende daquela fala que o limite é a preservação da segurança física do humorista. Bem, reservo-me o direito de não concordar com isso. Em segundo lugar, “cristianismo” não é ideologia — embora tenha viés ideológico. No Brasil e no mundo, cristianismo, em si, não é projeto de poder. Nem o Feliciano, para citar este que foi transformado em espantalho, defende uma sociedade teocrática. Como? “Rir da burca, para nós, não tem qualquer implicação etc?” Deixe-me ver se entendi: nos países islâmicos, jamais haverá humor com a religião — ou debate de qualquer outra natureza. Não pode. Fora de lá, não faz sentido o questionamento porque, afinal, não existem as tais implicações. Logo, o Islã brilha acima de qualquer questionamento. Já o cristianismo oferece a carne barata às milícias islâmicas da África e do Oriente Médio e fica submetido, no Ocidente — já que seus partidários são pacíficos —, a ataques bucéfalos, ignorantes, dos ateus que são muito corajosos para pregar a morte de Deus onde isso é permitido. Ora… MAS ATENÇÃO! QUE CONTINUEM A FAZÊ-LO. Só não venham você e qualquer outro defender que o simples ato de recorrer à Justiça ou ao Ministério Público caracteriza fascismo. De resto, não sei se entendi direito, mas me pareceu que você considera que só valores dominantes podem ser submetidos ao humor, é isso?
Em segundo lugar, religião é hoje 100% política.
Preconceito e juízo de valor. Mas ainda que fosse… E daí?
Ou alguém por aqui vai ter a hipocrisia de dizer que a “bancada evangélica” não é uma força política ou que nunca ouviu falar da “cura gay”?
E daí? Em certa medida aristotélica, tudo é política. Acho que já falei sobre a “cura gay”, o projeto que nunca existiu.
Grande parte da canalhice deste planeta hoje, se esconde atrás de alguma religião, o último tabu.
Quanta bobagem, Guto! Aí não tenho como evitar: vá se instruir a respeito. O comunismo matou uns 150 milhões no século passado. Religião? O nazi-fascismo, guerras à parte, aos menos uns 10 milhões. Religião? Dois anos de Terror, na Revolução Francesa, mataram mais do que quatro séculos de Santa Inquisição. Religião? As mortes decorrentes de credo religioso, hoje em dia — é fato, não especulação — estão relacionadas ao Islã: muçulmanos contra cristãos e muçulmanos contra muçulmanos. É aquela religião que, segundo as suas escolhas, fica livre de qualquer abordagem crítica.
Estou enganado?
Está enganado.
Diga o contrário, me chame de imbecil se quiser, mas não dá pra tentar justificar o fascismo envergonhado dos “ofendidos”. Eles têm direito ao sentimento e o direito de manifestar suas discordâncias da forma que bem entenderem. Mas, definitivamente não têm o direito de calar quem pensa diferente.
Não o chamo de imbecil. Só de autoritário. “Fascismo envergonhado dos ofendidos”? Eis uma frase que ficaria bem na boca do Stálin, quando ele mandou passar fogo nos camponeses da URSS… Ou na boca de Mao Tsé-tung ao matar 70 milhões. Como se sabe, Deus estava morto nesses regimes. Ademais, quem está advogando o direito dos cristãos de “calar quem pensa diferente”? Você é que está chamando de fascista quem decide recorrer a prerrogativas democráticas.
Quem apoia a censura à liberdade de expressão em nome da religião, compartilha a visão de mundo dos déspotas que estão no poder na Arábia Saudita, no Irã, na Coreia do Norte.
A Coreia do Norte é um regime ateu. Mas fiquei curioso: apoiar a censura em nome de uma religião é feio, certo. E eu concordo. E em nome de algum outro valor como, digamos, a “justiça social”? Aí dirá alguém, não o Guto, um rapaz esperto: “Ah, mas quem vai ser contra a justiça social?”. É verdade! Mas espere: quem define o conteúdo do que seja “justiça social”? Uma ONG? Um partido? O governo? Mais uma, Guto: o que você acha da censura em nome dos direitos humanos? Aí dirá alguém, não o Guto, um rapaz esperto: “Ah, mas quem vai ser contra os direitos humanos?”. Mas espere: quem define o conteúdo do que seja “direitos humanos”? Uma ONG? Um partido? O governo petista tentou, no tal Plano Nacional de Direitos Humanos, censurar a imprensa em nome desses nobres valores. Sim, estamos de acordo: tentar a censura em nome da religião é condenável — e eu condeno também. E em nome de valores ditos laicos, progressistas?
E quem se sente envergonhado de se ver do lado do Feliciano, deveria pensar melhor e decidir de que lado do muro se deseja ficar.
Formulação fascistoide: “Ou está comigo ou está contra mim. Ou sai por aí tentando linchar o Feliciano, como nós fazemos, ou, então, ficará ao lado dele”. Uma ova, meu rapaz! Uma ova! Foi assim que o Robespierre impôs o terror na França. Foi assim que o Mao Tsé-tung fez a sua “revolução cultural”. Eu nunca concordei com o Feliciano em absolutamente nada. Tenho dezenas de textos a respeito. Mas chamei de autoritária a gritaria para tentar arrancá-lo de uma comissão, aonde chegou segundo as regras da democracia. Tem mais, Guto: você jamais vai me ver a endossar uma bobagem porque dita por uma sumidade ou a censurar uma coisa certa porque dita por alguém de quem discordo.
A propósito, dar a esse artigo 208 do Código Penal a interpretação pretendida pelo Sr. Marcos Feliciano seria de um absurdo sem precedentes numa democracia moderna e num estado laico.
Ao artigo 208, então:
“Art. 208 – Escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso:Pena – detenção, de um mês a um ano, ou multa.”
Argumente mais.
Uma coisa é invadir um local de culto, zombar de um indivíduo em particular em circunstâncias em que sua privacidade precisa ser defendida. Outra completamente diferente é dizer que um grupo de humoristas não pode, num canal privado disponível para o público (e que, portanto, assiste quem quer), satirizar ou criticar abertamente a religião dominante no país. De fato, citando Walter Williams novamente para que não reste dúvidas, “a liberdade de expressão só é realmente posta à prova quando diante de pessoas que dizem coisas que consideramos absolutamente repulsivas”.
Perdão! Esse argumento é meu. Num texto em que digo que não processaria ninguém. Mais: quem leu direito percebeu que entendo que existem mecanismos bem mais efetivos para que os cristãos se façam ouvir. Há muitas diferenças entre nós, Guto, mas, no caso em espécie, a fundamental é a seguinte: você acha que a religião se situa em algum lugar entre a bobagem, a manipulação e a estupidez; e eu acho que não. Porque acha que os religiosos são tolos, manipuladores e estúpidos, chama de fascistas os que recorrem a leis democráticas para se fazer ouvir; eu, obviamente, discordo. E, creio, mas não posso asseverar, você acredita que, a depender do valor que se tente preservar, a censura é até aceitável. E eu penso que ela é inaceitável em qualquer caso, desde que se assegure àqueles que se sentiram ofendidos o direito de reagir — nos limites da democracia.
É o que estão fazendo alguns cristãos. Por que a gritaria? É, Guto… Eu entendo que a minha opinião deixe muita gente irritada. Seria mais fácil me apontar: “Lá vai aquele troglodita que quer a censura”. Não! Eu não quero! O máximo que dá para dizer é: “Lá vai aquele cara que sustenta que, na democracia, existe o direito de fazer rir, de rir e de ficar zangado. Mais: ele disse também que a democracia oferece canais de expressão para todos eles”.
Ademais, para encerrar, meu caro Guto, o humor, como a religião, também é política, não? Qual é o seu problema com os embates políticos? Eles só existem com vozes ativas. Ou se deve calar um dos lados — porque “fascista”, segundo você — para que o outro exiba a sua superioridade democrática e tolerante? 
Ora…Por Reinaldo Azevedo

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