quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

ESCRIVÃO ADMITE QUE HOUVE TORTURA NAS DEPENDÊNCIAS DO DOI-CODI EM SÃO PAULO

O ex-escrivão de polícia Manoel Aurélio Lopes, de 77 anos, admitiu nesta terça-feira, em depoimento nas comissôes Nacional e Estadual da Verdade, a prática de tortura nas dependências do Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), a Oban (Operação Bandeirantes), na Rua Tutóia, na época do regime militar. Segundo a Comissão Nacional da Verdade (CNV), Lopes foi o segundo agente público a admitir a prática de torturas. O primeiro foi Walter Jacarandá, durante audiência em agosto do ano passado, no Rio de Janeiro. Em um interrogatório que durou cerca de duas horas e meia, Lopes demorou a admitir que houve tortura no DOI-Codi – o que só ocorru depois de uma hora e 40 minutos de depoimento. O ex-escrivão foi convidado a depor por ter assinado o auto sobre a munição apreendida com o militante político Arnaldo Cardoso Rocha, preso e morto em 1973. Lopes admitiu a existência de tortura após a viúva, Iara Xavier Pereira, ter implorado a ele informações sobre o companheiro, que foi torturado no DOI-Codi. “O máximo que vi foi usarem latas de leite em pó, e o cidadão, nu, subir com os dois pés nessas latas e ficar encostado na parede, segurando duas folhas de papel com os braços abertos. Essa aí eu assisti. Quando não aguentavam mais, caíam da lata e recebiam os golpes. Dos casos de tortura femininos, nunca participei. Vi a pessoa do sexo feminino sentada na cadeira, ao lado da cadeira do dragão”, contou Lopes. Mais tarde, ele disse que presenciou sessões de tortura de militantes políticos no DOI-Codi por curiosidade. “Para responder sinceramente, fui ver como é que funcionava isso (tortura). E fiquei decepcionado, mas nunca agi. Fiquei decepcionado porque vi onde um ser humano é colocado e para quê. Naquele tempo, há 40 anos, o pessoal não tinha a flexibilidade mental que vocês têm hoje”, afirmou Lopes. O que o ex-policial contou ter visto nessa experiência foram “duas mesas, um cano, um camarada nu, preso, com os braços amarrados". "É o chamado ‘pendura’. Saí da sala sem saber o que pensava no momento. Mas gravei aquela cena”, disse ele: "Vi e assisti movido pela curiosidade". Lopes ressaltou que nunca denunciou os casos de tortura por causa do trabalho. Indagado se o que ele fazia era do tipo “eles faziam o trabalho deles, e eu, o meu”, respondeu que era o que de fato acontecia, já que “não via outra forma” de fazê-lo. “É o trabalho, né?”, enfatizou. Durante o interrogatório, Lopes mencionou  a existência de uma “caixinha” para os agentes que trabalhavam no DOI-Codi. Segundo ele, “esse presentinho”, ou “essa casquinha”, correspondia a cerca de 25 cruzeiros (moeda da época). “Era um presente para quem ia trabalhar lá”, disse o ex-escrivão, sem confirmar se o pagamento era mensal e destinado aos agentes por preso que chegava ao local. “A gente retirava a verba do gabinete do secretário de Segurança da época. A gente tinha que ir lá pessoalmente”, revelou. O dinheiro era entregue por um tesoureiro, na própria sede da Secretaria de Segurança que, na época, ficava na Avenida Higienópolis. Sobre a morte do militante Arnaldo Rocha, o ex-escrivão pouco falou. Perguntado sobre um documento assinado por ele, que identifica a munição encontrada com Rocha no momento da prisão, no dia 15 de março de 1973, Lopes disse que não reconhecia o atestado, nem sua assinatura no papel, sugerindo que o documento pode ter sido modificado: “Não me recordo. Montaram, a meu ver, esse documento". Segundo ele, no DOI-Codi, dificilmente, os escrivães tinham acesso ao material apreendido com os presos políticos e não costumavam participar dos interrogatórios: “O escrivão, naquela época, basicamente só transcrevia". Pela versão oficial, Rocha e mais dois militantes da Aliança Libertadora Nacional (ALN), Francisco Emmanuel Penteado e Francisco Seiko Okama, estavam conversando na Rua Caquito, na Penha, quando uma patrulha policial passou e deu ordem de prisão. De acordo com o registro oficial, os três reagiram à abordagem e foram mortos em confronto com os policiais. Essa versão sempre foi contestada pela família. A viúva de Rocha, que tinha pedido a exumação do corpo, pediu também o aprofundamento da investigação, o que resultou na audiência da CNV em São Paulo. O laudo feito após a exumação do corpo concluiu que não houve confronto e que Rocha foi morto após ser torturado no DOI-Codi. O documento sobre a munição apreendida, que tem a assinatura do ex-escrivão Lopes, foi lavrado apenas quatro dias depois da morte de Rocha e diz que ele portava documentos de identidade e carteira de habilitação com o nome falso de José Carlos Spinelli, além de um revólver Taurus, calibre 38. Para Iara Xavier, o depoimento de Lopes pouco contribuiu para a investigação da morte de Rocha, embora tenha sido positivo o fato de ele ter comparecido voluntariamente à audiência pública. Para ela, o ex-escrivão escondeu informações sobre o caso.

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