domingo, 2 de agosto de 2015

A delação premiada tem de ser regulamentada para não pôr em risco o combate ao crime. Ou: Advogado de porta de cadeia e de porta de MP

A Operação Lava Jato, escoimados exageros e ilegalidades, pode fazer um bem ao País se mudar — mas terá de ser para melhor, por óbvio — a relação entre o estado (e seus entes) e as empresas que ele contrata para tocar serviços e obras. Cumpre notar à margem, desde sempre, que não haverá a desejada redução da corrupção no país enquanto o ente estatal tiver o tamanho que tem no Brasil. A Lei de Licitações, a 8.666, é, sim, um bom texto. Mas seu espírito pode ser fraudado já na redação de um edital. Basta que se incluam exigências no texto que restrinjam a disputa a duas ou três empresas de qualquer setor. Você não gosta de corrupção, leitor? Há duas saídas: a) apostar todas as fichas na natureza humana; b) cobrar a redução drástica do tamanho do estado, de modo que ele restrinja a sua atuação a saúde, educação, segurança e regulação. E ponto. Não vai zerar a safadeza, não, porque isso remonta à cobra e à maçã, mas vai melhorar muito. Sigamos. Não se teria chegado tão longe na descoberta das falcatruas que envolveram o assalto à Petrobras não fosse o estatuto da delação premiada. Mas a realidade está a gritar uma obviedade: ELA PRECISA SER DISCIPLINADA. E COM URGÊNCIA. Como está, as coisas podem assumir contornos bastante perigosos. ADVOGADOS ACUSAM A CPI DA PETROBRAS DE ESTAR SENDO USADA PARA SE VINGAR DESSE OU DAQUELE. É? Faço aqui uma pergunta: A ESTA ALTURA, NÃO HÁ PESSOAS TENTANDO USAR A LAVA-JATO PARA FAZER A MESMA COISA? Quantas delações? Vamos ver. Volto à inefável doutora Beatriz Catta Preta. Confesso que já acho um tanto estranho haver um escritório que se especializa em delações premiadas. Na porta, poderia haver uma plaquinha: “São bem-vindos os bandidos que, mesmo sem arrependimento, querem livrar a cara”. NÃO! NÃO ESTOU DIZENDO QUE A DELAÇÃO PREMIADA É UM MAL EM SI. REITERO: TEM DE SER DISCIPLINADA. Vamos ver. Faz sentido um mesmo advogado ter uma penca de delatores sob seus cuidados? Há um momento, suponho, em que o larápio tem de contar para o seu defensor o que fez. Se a versão do larápio A não combina com a do larápio B, que, por sua vez, diverge da do larápio C, o advogado em questão faz o quê? Leva seus clientes para a Corte, com todas as suas contradições, ou faz um “encontro de versões”? Acho que a resposta é mais do que óbvia, não é mesmo? Doutora Beatriz, que desistiu da carreira, segunda ela própria, era bastante voraz até outro dia: fez nada menos de nove das vinte (se não perdi a conta) que foram homologadas até agora. É evidente que ela tem de se ocupar, por imposição lógica, menos da “verdade” do que da coerência, não é mesmo? Ou os seus defendidos vão acabar se complicando nos tribunais. Pouca gente se lembra a esta altura da confusão, mas, inicialmente, Rodrigo Janot acrescentou o deputado Eduardo Cunha à sua lista porque o policial Jayme de Oliveira Filho afirmou que havia entregado dinheiro, a mando de Alberto Youssef, para um emissário do parlamentar. O advogado do doleiro, Antonio Figueiredo Basto, negava veementemente que isso tivesse acontecido. Creio que essa negativa ainda está mantida. Basto passou a elevar muito a temperatura de sua retórica contra Cunha quando passou a ter um segundo delator premiado: justamente Julio Camargo, ex-cliente de Catta Preta — aquele que mudou radicalmente sua versão sobre o agora presidente da Câmara. Uma investigação, aqui ou em qualquer lugar, não pode ser um arranjo de versões, de sorte a compor uma narrativa ao gosto daquele ou daqueles que têm o poder de lhe dar a redação final. Assim, o primeiro ato de disciplinamento tem de dizer respeito ao número de clientes em delação premiada que pode ser abrigado por um advogado ou por um escritório. Sugiro: a cada caso, apenas um!!! Que aquele escritório fechado pela doutora Beatriz fosse uma espécie de indústria de delações, isso parece evidente. E, como se nota, estimular um bandido a entregar seus comparsas rende bons frutos. Indagada se é verdade que recebeu R$ 20 milhões pelas nove delações, ela disse que não chegou “nem à metade”. Se tivesse dito “nem a um terço”, seria abaixo de “R$ 6,7 milhões”. Não tendo sido “nem a metade”, dá para chutar um R$ 8 milhões, R$ 9 milhões. É um bom dinheiro para submeter as versões a um arranjo. Em Hollywood, só roteiristas de primeiro time recebem isso tudo. A delação não pode ser também uma “obra aberta”. Há de haver o momento solene da tomada do depoimento e da resposta dada. O benefício, segundo se entende, só pode advir de o depoente dizer a verdade, mas não quando lhe der na veneta. Se, no tal momento solene, ele mentir, não há mais como lhe dar o benefício caso a verdade surja da árvore dos fatos, não de sua confissão. Ou, por óbvio, a coisa vira a festa do caqui: o delator vai ajustando a sua versão à medida que isso se torna necessário. Em vez de ser beneficiado porque disse a verdade, ele extrai seus benefícios das mentiras convenientes que conta. Eu me orgulho muito de contar com o respeito de advogados das mais variadas correntes do direito — com a exceção provável daqueles que desprezam os códigos escritos, pactuados na democracia, e entendem que o direito sai do alarido de grupos militantes. Operadores da área das mais variadas correntes e ideologias reconhecem, e isso me honra, o meu apreço pela defesa. Sempre tive. É assim desde que me ocupo de temas públicos. Compreendo o fundamento básico de que, diante do estado acusador, é preciso assegurar as garantias para o indivíduo. Por essa razão, o estado tem de garantir a privacidade da relação entre o advogado e o investigado, acusado ou réu. É papel de um defensor tentar descaracterizar as evidências que o ente acusador apresenta contra o seu cliente. Mas atenção! Não é prerrogativa de um advogado mentir de forma deliberada a depender do rumo dos ventos — em especial quando está em curso um acordo de delação premiada. Voltemos aos oito de Beatriz. Se Julio Camargo pôde mentir, antes ou agora, com tanta desfaçatez sobre o pagamento de propina a Eduardo Cunha, por que devemos confiar necessariamente na versão apresentada pelos demais clientes que estavam sob seus cuidados? A sombra da suspeição não acaba se estendendo aos demais casos? Se queremos que a delação premiada passe a ser um instrumento realmente útil à verdade, esse procedimento tem de estar protegido da ação deletéria de certo profissional que mais põe em risco uma operação saneadora do que colabora com ela. O antigo advogado de porta de cadeia, uma caricatura, não pode ser substituído pelo advogado de porta de Ministério Público. É bom que a OAB e o Parlamento comecem a pensar essa questão, propondo uma regulamentação em benefício da verdade e contra a impunidade. Por Reinaldo Azevedo

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