quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

A maioridade penal e o abstracionismo

Por Luis Milman 
Todos aqueles que defendem a manutenção da maioridade penal em 18 anos deveriam aceitar que, no que concerne às penas, o Estatuto da Criança e do Adolescente, que tem mais de 25 anos, é, no melhor dos casos, uma peça jurídica de ficção. Como outras tantas produzidas em gabinetes, não passou no teste da realidade. A defesa da sua manutenção, tal como está, consagra um pensamento vicioso, porque forçado a reconhecer que o Estado fracassou na administração do sistema penitenciário, que é um desastre na condução do ensino público, que inexiste na produção de condições mais dignas para quem vive nas periferias das cidades e que não tem soluções para enfrentar os alarmantes níveis da criminalidade. Esta sucessão de fracassos não impede, no entanto, que os esquerdistas, há mais de 13 anos com o governo do País, deixem de desejar manter o status quo. Eles permanecem apegados a fantasias e mistificações sobre a personalidade abstrata de pessoas com menos de 18 anos que cometem crimes graves. A redução da maioridade penal, que exige alteração constitucional, já passou pela Câmara dos Deputados e permanece na pauta do Senado, mas o histrionismo escapista da esquerda, contra todas as evidências, continua a mostrar como o abstracionismo, no Brasil, em estado cognitivo-dissociativo, é capaz de violentar o bom senso.
O que quero dizer com isto? Neste tema, os esquerdistas manipulam abstrações enquanto mutilam a realidade. A abstração sempre foi inimiga do realismo e da prudência. Ela não é a generalização a partir dos dados da experiência, nem a formulação de hipóteses sobre regularidades constatáveis. Abstrações são sistemas fechados de crenças, alguns meramente esquemáticos, outros aparentemente mais elaborados, que são impostos ao real e que, quando não o descaracterizam completamente, em muitos casos, conflitam com ele. Como sempre há discrepância entre o ideal abstrato e os fatos, o abstracionista tende ou a abrir mão dos dados, a ignorá-los ou mesmo a falsificá-los, para preservar a coerência interna da ideologia em que acredita. Cito dois exemplos de abstracionismo clássicos: o primeiro, no qual Marx falsificou os dados dos cadernos azuis de Gladstone, sobre a condição de renda dos trabalhadores ingleses para provar sua tese de que a renda média dos operários, ao contrário do que os dados mostravam, decrescia na Inglaterra. O segundo é sobre o paleontólogo inglês Charles D. Walcot, diretor do Smithsonian Institut, a maior organização de museus e curadores de sua época, no início do século XX. Walcot descobriu , no platô de Burgess Pass, Canadá, cerca de 60 mil fósseis do período Cambriano (550 a 450 milhões de anos). A descoberta desafiava o estado da arte darwiniano e também a mente de Walcot e, por isso os fósseis coletados foram mantidos em segredo, nos porões do Smithsonian Museum por oito anos. O motivo: Walcot via nos fósseis das rochosas de Burgess Pass a negação da teoria randômica da evolução de Darwin. E preferiu ficar com a teoria errada do que com a realidade que ele próprio descobrira. 
A coerência abstracionista tomada isoladamente, ou seja, desconectada da realidade, é expressão de uma paranóia bastante comum no meio esquerdista, a dissonância cognitiva, um tipo de desejo humano que tende a ignorar fatos desagradáveis à doutrina defendida para preservar idéias já consolidadas na mente. Disso resulta uma violência cometida sobre os fatos, imposta por uma racionalidade deformada, que, nos campos da ciência e, especialmente da política, pode terminar em desastre. Lembremos das experiências desastrosas, que ceifaram dezenas de milhões de vidas, praticadas por Stálin e Mao Tse Tung, com base em idéias sobre a coletivização forçada da propriedade da terra.
É evidente que, para qualquer padrão sensato de avaliação, menores de 18 anos que cometem crimes possuem capacidade de discernimento sobre o que é certo e errado. Eles fazem escolhas conscientes e sabem o que é moral e legalmente permitido. Nesta faixa etária, todos sabemos o que fazemos e os criminosos não são levados para fora da lei por algum tipo de heteronomia social ou econômica, por uma condição de classe, raça ou de cor, como apregoa o esquerdismo abstracionista. A imensa maioria das pessoas de qualquer idade, de todas as classes sociais, enfrenta as dificuldades da vida dentro de parâmetros estritos de normatividade, praticando-os e observando-os como limites de possibilidade de convivência na sociedade. Esta realidade, como não pode ser negada pelo abstracionista, é interpretada por ele de modo distorcido, como prova de que as pessoas em geral não se rebelam como deveriam contra as injustiças sociais, que são mantidas em estado de domesticação pela hegemonia exercida pela classe dominante. Há uma crença invertida que subjaz às teses daqueles que sustentam que menores de 18 anos não podem ser punidos com rigor: tais menores são vítimas da sociedade, do sistema econômico ou de algum tipo de segregação. Muitos abstracionistas escreveram sobre isto nestes termos. Muitos também sustentam que o crime e a rebeldia são expressões, em última análise, de uma revolta contra condições permanentes de opressão. E que o crime, ao fim e ao cabo, é uma forma desorganizada de resistência do oprimido. Devemos, assim, conter nossos impulsos punitivos e substituí-los pela compreensão de que o crime, em especial o juvenil, é mais uma prova de que a sociedade deve ser transformada.
Uma vitória do esquerdismo abstracionista no campo dos argumentos para a manutenção da maioridade penal em 18 anos representa uma derrota da razão reta na compreensão das condições que levam um indivíduo a praticar crimes violentos, independentemente da sua idade, em situações psicológicas, morais, culturais ou sociais dadas. É claro que o abstracionista jamais vivencia o crime na carne e revela uma inevitável propensão para ignorar a perda e a dor das vítimas dos criminosos. Quando confrontado com este argumento, ele afirma que suas idéias não podem ser criticadas no plano concreto, que os parâmetros de análise não podem ser emocionais, pois isto levaria à pura e simples abolição da lei em nome da consagração de um espírito de vingança. Também aqui ele demonstra que seu esquematismo é doentio. É da empatia, da capacidade de colocarmo-nos no lugar do outro, que derivamos o juízo moral do que é permitido, censurável ou abominável. O esquerdismo abstracionista reduz estas situações ao determinismo vitimista: a culpa jamais é do autor do crime, ainda mais se se tratar de um jovem; ela - a culpa - é distribuída pela sociedade, ou atribuída coletivamente à classe dominante que o gerou. É a sociedade que deve ser reformada, mesmo que no plano idealizado. Isto demonstra que, em última instância, o abstracionista não é capaz de formular um juízo moral.
Para o abstracionista, diga-se, esta sociedade não pode ser alcançada porque as forças da reação, os conservadores, os exploradores do trabalho e da psicologia das massas defendem seus interesses por meio de instituições opressoras, como a lei que pune vítimas sociais que teriam sido levadas à marginalidade. Condicionados por esta apreensão paranóide, os abstracionistas sequer são capazes de fazer uma discussão equilibrada sobre as razões da existência dos alarmantes índices do crime no Brasil e sobre a disfuncionalidade abjeta das penas na nossa sociedade, do sistema de progressão de regime prisional, do crime sistêmico que enlaça tráfico de drogas e roubo e dos fatores que levam à reincidência. Quando falam sobre o assunto, recaem na ladainha das desigualdades e injustiça sociais. Põem-se a teorizar sobre direitos vagos à ressocialização não-punitiva, sem, ao menos, exigir do Estado que faça os necessários investimentos em prisões e na sua administração, que hoje existem como antros dominados por grupos criminosos organizados. Parecem ignorar que o Brasil, depois de áreas de conflito e guerras civis, é o país onde mais se mata no mundo, com uma marca de 60 mil assassinatos por ano. 
O esquerdismo mostra, também neste assunto, que é a infantilização dissociativa da razão. Mas a Câmara dos Deputados não se intimidou com o ataque colérico dos abstracionistas, reverberado nos meios de comunicação. A vontade esmagadora em favor da mudança na Constituição, que permitirá a nova norma, ao que tudo indica, tem todas as chances de prosperar no Senado. Caminhamos, com isto, para resolver, não por óbvio, todos os problemas da criminalidade endêmica no Brasil, mas uma situação de anomalia de impunidade que existe na relação entre a lei e aqueles que praticam crimes repulsivos em quaisquer faixas etárias.
Nem sempre, é claro, o abstracionismo da esquerda determina as decisões políticas no Brasil e, mais ainda, termina vencedor em disputas parlamentares. A vitória da primeira votação da PEC que instituiu a idade penal para maiores de 16 anos na Câmara, em caso de crimes graves que atentam contra a vida, nos força a reconhecer que o bom senso e o componente realista pautaram as decisões da maior parte dos deputados federais neste assunto. E isto em que pese o desproporcional empenho do governo e das esquerdas em derrotar a emenda que altera a constituição. Viu-se – e ainda se vê - nesta queda de braço entre os realistas, que contam com o apoio de mais de 85% da população brasileira, segundo as pesquisas, e os abstracionistas da esquerda, que contam com eles mesmos e com uma legião de ONGs sustentadas pelo Estado para atuarem nas áreas de assistência a jovens infratores, que a força dos argumentos tem sido, pelo menos até aqui, mais efetiva que a força da mistificação ideológica determinada pela dissonância cognitiva dos esquerdistas.
O governo investiu pesadamente na tentativa de desmoralizar os defensores da PEC. Qual a razão? Por que o petismo se empenhou tanto em manter uma situação que desafia o bom senso no que diz espeito à percepção sobre a criminalidade? Uma reflexão sobre o empenho governista, ainda mais em se tratando do Partido dos Trabalhadores e da esquerda que é satelizada por ele, revela que não está em jogo, nesta disputa entre os que querem diminuir a idade para a responsabilização de crimes e os que querem mantê-la tal como é hoje, apenas questões fáticas ou doutrinárias específicas. As esquerdas defendem, com suas posições, um status quo sistêmico, regado a bilhões de reais que saem dos cofres públicos para abastecer ONGs e uma burocracia de assistência aos menores de idade infratores que, com a aprovação definitiva da PEC, simplesmente deixaria de ter razão de existir.
É desnecessário ser exaustivo neste ponto, mas um ou dois comentários devem ser feitos. O Estatuto da Criança e do Adolescente, que, tal como é hoje, será remetido para a lixeira da história, caso a PEC votada na Câmara seja endossada no Senado. O ECA vem sustentando a existência de uma rede assistencialista e ineficaz para menores infratores, onde operam desde promotores de justiça, assistentes sociais e psicólogos a ONGs financiadas por dinheiro público. Este aparato é, como sabemos, caro e injustificável, porque a criminalidade entre os jovens só faz aumentar. Pelas estatísticas disponíveis ao Ministério Público de São Paulo, entre 15 e 30% dos crimes violentos naquele Estado são cometidos por jovens na faixa de 15 a 18 anos. O ponto, aqui, é que não há estatísticas mais precisas para todo o País, o que, por si só, já demonstra a inconsequência com que o assunto é tratado pelas autoridades de segurança em nível nacional. Com base nos dados de que dispomos, se contarmos apenas os homicídios, e considerarmos que 10% dos crimes contra a vida são praticados por menores, isto significa que das 60 mil vítimas anuais destes crimes no Brasil, no mínimo 5,5 mil deles são cometidos por menores de 18 anos. O número é alarmante e, só por ele, já estaria justificada a redução da responsabilização criminal. Já vi, por ouro lado, defensores da manutenção da maioridade penal em 18 anos governistas e nefelibatas afirmarem que apenas 1% (um) dos homicídios cometidos no Brasil são de autoria de menores de 18 anos, sem apresentarem qualquer fonte para estes dados. A afirmativa é ridícula, por dois motivos: primeiro, porque- e este dado é alarmate- apenas 8 (oito) por cento dos homicídios praticados no país são esclarecidos, segundo dados do próprio Ministério da Justiça. Assim, como podemos saber se dos 92 por cento restantes, apenas 1 (um) por cento é praticado por menores? E, segundo, ainda que fosse apenas 1 (um) por cento o número de homicidas juvenis, porque não se aplicar a estes as penas comuns?
Os bandidos juvenis fazem parte daqueles grupos sociais mais marginalizados da população, é verdade. Mas o número de homicidas e ladrões violentos entre eles demonstra que vivemos numa sociedade em que a carga dissuasória para o cometimento de crimes é baixa, ou seja, que o caráter preventivo da pena é ineficaz e que é urgente elaborarmos, no plano da repressão (a mudança da lei) e do ensino formal -os dois eixos de estruturação de uma política de combate à violência – uma estratégia capaz de ser efetiva com relação ao combate à criminalidade juvenil. Outro ponto importante: em sua grande maioria, são os menores mais pobres que cometem crimes graves, mas, também, é a população mais pobre que é a sua vítima.
A questão, assim, se resume ao que fazer com os menores delinquentes. O número devastador de criminosos juvenis, sempre velado por estatísticas inexatas e pela retórica abstracionista, afasta, na realidade, qualquer interpretação leniente do problema da criminalidade no país, porque desnuda aquilo que todos sabemos, tanto pelas informações contínuas, embora desconectadas, que recebemos, como pela certeza de insegurança constante em que vivemos. Para os abstracionistas, como já escrevi, estes assassinos devem ser tratados como incapazes e submeterem-se apenas a uma tutela socioeducativa do estado, que, depois de, no máximo três anos, se esgota e os libera para a vida social, independentemente da gravidade do crime que cometeram. Isto não é pena, é terapia e das piores, porque grande parte dos criminosos que são submetidos a ela, volta a praticar crimes depois dos 18 anos. Já para os realistas, que apoiam a redução da maioridade penal, estes criminosos devem sofrer as sanções da mesma lei válida para adultos, como forma de punição. Não nos esqueçamos que a punição é a função central da aplicação da lei criminal. A prisão, mesmo nos países mais avançados no mundo, não é, certamente, a melhor das escolas, simplesmente porque prisão não deve ser, em primeiro plano, escola. Prisão é para cumprimento de pena. Mas, se administrada com controles rígidos e eficazes, pode, sim, ajudar na ressocialização, dependendo da disposição do apenado, ainda mais se levarmos em conta que, no Brasil, o mais abjeto assassino ou estuprador tem direito, depois de condenado, a regimes progressivos de pena, de fechado à semiaberto, de semiaberto à aberto. Ou seja, ninguém, excetuando-se, os sociopatas reincidentes, cumpre a totalidade de sua pena em reclusão.
Pode-se argumentar, mais uma vez ao estilo abstracionista, que as prisões brasileiras são precárias, que jovens criminosos serão simplesmente misturados a adultos criminosos em cadeias superlotadas, controladas por facções criminosas. Mas isto é desenvolver um argumento falacioso: a mudança de assunto. Mudamos de assunto quando dizemos que os governos que se sucedem, em nível estadual e federal, são incompetentes e insensíveis para tratar com a questão prisional, uma vez que não é disso que se trata quando propomos uma análise sobre a questão penal. O argumento não pode ser arrolado para precarizar a lei penal, relativizando sua aplicação por fatores administrativos, porque, desta forma, estaríamos simplesmente, comprometendo a forma lúcida de compreender o problema, a saber: a correta e exigida aplicação da pena demanda (a) mais prisões, (b) mais prisões controladas pelo estado (ou terceirizadas) e não pela criminalidade (c) mais prisões controladas nas quais, à pena de privação de liberdade, não seja agregada outra, a de humilhação compulsória.
Quanto aos jovens criminosos, que se providencie dependências prisionais adaptadas e separadas, a exemplo do que ocorre em vários outros países do mundo. O que não dá mais para tolerar é a impunidade de pessoas que mataram ou estupraram, e que pelo fato de não terem completado 18 anos ainda, sejam eximidas de responsabilidades e tratadas, pelo estado, como meras crianças disfuncionais que, depois de uma precária atenção assistencialista, podem voltar as ruas como se jamais tivessem praticado crimes graves. Elas não são crianças em nenhum sentido do termo. São jovens adultos que fizeram escolhas pelo crime. E na civilização, a punição corresponde ao crime praticado, para que seja preservada a ordem social em um de seus fundamentos: a garantia da aplicação da justiça.
Que se continue a aplicar o ECA, não o atual, mas outro, a delitos de baixo potencial ofensivo praticados por menores. Ninguém tem nada contra isso. Que se façam investimentos em educação formal em casas de ressocialização para menores que furtaram, envolveram-se com drogas e não provocaram danos irreversíveis às suas vítimas. Apenas uma mentalidade desajustada pode querer equiparar estes tipos de crimes aos crimes graves, que terminam em morte ou violência insana, como o homicídio, o latrocínio ou o estupro, que um número elevado de menores tem praticado impunemente no Brasil. Até mesmo porque a juventude está entregue às drogas no Brasil e uma das primeiras consequências desta realidade é a ruptura com os freios morais. Por isso, não se pode mais distorcer ideologicamente a realidade para adaptá-la a uma abstração delirante sobre as causas da criminalidade, cujo pressuposto é que os criminosos, sejam de que idade forem, são compelidos a condutas desviantes pelo, digamos assim, mundo desigual em que vivem. Este tipo de falsa racionalidade é uma abstração dissonante da realidade, mas continua sendo defendida por intelectuais da esquerda brasileira e pela mídia militante que os apoia e que faz ecoar o efeito nefasto de suas ideologias de poltrona. A realidade é que as maiores vítimas da delinquência juvenil são jovens e adultos de periferia. A verdade é que as abstrações desta natureza demonstram o quanto ainda estamos distantes de pensarmos em soluções efetivas para os nossos problemas mais urgentes.

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