domingo, 7 de agosto de 2016

Advogada rejeita o "direito ao esquecimento", ela diz que isso é usado para censura



Prestes a ser julgado no Supremo Tribunal Federal, o chamado direito ao esquecimento é base para decisões, mundo afora, que mandam apagar informações na internet. Mas ele "não existe", diz a advogada colombiana Catalina Botero, ex-relatora especial para liberdade de expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da OEA (Organização dos Estados Americanos). "É uma construção recente, uma categoria ambígua do direito, que se presta em alguns países, como o Brasil e o Chile, para decisões que censuram informações", diz ela. Já em outros países latino-americanos, como a Colômbia, "os casos estão se resolvendo de maneira mais razoável", usando "ferramentas clássicas" como a defesa da intimidade. A categoria do direito ao esquecimento surgiu aos poucos, para defender devedores mantidos indefinidamente em bases de dados financeiras após pagarem suas dívidas. Mas vem migrando para o jornalismo, principalmente a partir de uma decisão de 2012 na Europa, contra o Google. E agora, diz Catalina Botero, "enquanto de um lado da balança está um direito que ninguém sabe onde começa, onde termina, em que consiste, do outro estão direitos consistentes, que são essenciais numa democracia", como à informação e ao conhecimento.
 O direito ao esquecimento vem sendo usado como direito à censura na América Latina?
Catalina Botero - Em primeiro lugar, o direito ao esquecimento, como direito fundamental, não existe. É uma construção recente, uma categoria ambígua, que efetivamente se presta em alguns países, como o Brasil e o Chile, para decisões que censuram informações que o público tem o direito de conhecer. Em outros, onde não se aceitou a categoria, como a Colômbia e a Argentina, o que acontece é que os casos estão se resolvendo de maneira mais razoável, por exemplo, com a defesa da intimidade e o direito ao bom nome. Eles foram resolvidos com as categorias tradicionais do direito constitucional, sem gerar ações de censura.
Pergunta - Existe um limite razoável para o direito ao esquecimento ou a simples aceitação de que é um direito representa ameaça à liberdade de expressão?
A simples aceitação da categoria jurídica é uma ameaça, por uma razão clara: ela é absolutamente ambígua, quer dizer, é qualquer coisa. O direito ao esquecimento pode amparar, por exemplo, que pessoas que tenham sido condenadas por crimes gravíssimos desapareçam com todo o seu histórico na internet. Ou que políticos que tenham sido condenados por corrupção apaguem seu histórico na internet. Ninguém sabe qual é o limite do direito ao esquecimento, justamente porque é uma categoria que não existe no direito. É uma categoria cujas fronteiras são muito pouco claras, então serve para que se tome qualquer decisão, sem controle, porque ninguém sabe exatamente o que é. Por isso é tão perigoso. Porque do outro lado está o direito à informação, à memória, ao conhecimento. Está, por exemplo, o direito político de conhecer as pessoas que se submetam a ser eleitas numa disputa popular. Enquanto de um lado da balança está um direito que ninguém sabe onde começa, onde termina, em que consiste, do outro lado estão direitos consistentes, que são essenciais numa democracia.
A controvérsia em torno do direito ao esquecimento se deve à era das plataformas de busca e mídia social ou é fenômeno anterior, já enfrentado pelo jornalismo em outras épocas?
A categoria foi usada originalmente para bases de dados financeiros, não no jornalismo. E se usou porque, quando uma pessoa não pagava uma pequena dívida durante um tempo curto, essas bases de dados a mantinham como devedora durante anos e anos, décadas. Por isso esse direito foi construído, para defender quem um dia simplesmente disse "não posso pagar", mas era pessoa de boa fé e tinha direito de não ser excluída do crédito financeiro. Para isso se cria a ideia de que há um momento em que os dados de dívida pessoal devem, digamos, prescrever. Quer dizer, você tem direito de que certos dados não sejam acessíveis ao público. Mas isso, construído nas bases de dados financeiros, tem muito sentido. E demorou décadas até que o direito consolidasse a idéia de que, passado um tempo razoável, você tem o direito a que seu histórico de crédito esteja limpo. Mas transferir essa figura para o jornalismo é perigosíssimo. Construir essa figura só no contexto das bases de dados financeiros foi muito difícil e finalmente se chegou a uma doutrina mais ou menos pacífica, mas demorou. Isso, transferido para o jornalismo, onde não é simplesmente o dado financeiro, mas todos os dados de todas as pessoas, sem limites e critérios, apaga a história de um povo.
A derrota do Google na União Europeia, a partir de uma ação na Espanha, é o acontecimento mais importante até agora, nesse contexto? Ela vem influenciando outras ações?
Em primeiro lugar, essa decisão foi mal interpretada, por algumas pessoas que não a leem e por outras interessadas em apagar seu histórico. Ela não obrigou o jornal, a imprensa a apagar a informação. A decisão se refere basicamente ao intermediário que indexava a informação, não à imprensa. O que está acontecendo em alguns países é que se está ordenando diretamente aos meios de comunicação que eliminem a informação de seu arquivo digital. As duas coisas são perigosas, mas primeiro é preciso esclarecer que é uma sentença que não se aplica à imprensa. Que se aplica expressamente aos intermediários. Agora, aplicá-la aos intermediários, de qualquer maneira, é perigoso, porque muita gente não entra diretamente no arquivo do jornal. Mas é mais grave ordenar ao jornal que apague seu arquivo digital.
O processo europeu ainda pode ser revertido?
Sim, eu creio que é reversível. Todas as decisões podem ser revertidas. Esta foi tomada aplicando a diretriz europeia de direito ao esquecimento ao Google, entendendo que era uma base de dados. Creio que haverá decisões posteriores, porque na União Europeia há uma comissão que está estudando o tema do direito ao esquecimento, pela reação que causou essa sentença. Acredito que haverá diretrizes mais claras e mais cuidadosas a partir do término dos trabalhos dessa comissão.
O movimento pelo direito ao esquecimento é global. É possível coordenar os esforços internacionais de defesa da liberdade de expressão? Plataformas e veículos conseguirão se unir globalmente?
Sim, o movimento pela liberdade de expressão também é mundial. O problema é que às vezes os juízes são sensíveis ao tema do direito ao esquecimento porque se identificam com a pessoa que quer apagar seus dados. Mas eu creio que rapidamente isso vai sair de moda, digamos, e que é muito fácil demonstrar o perigo que significa essa categoria em matéria jurídica. O movimento de liberdade de expressão está sendo um esforço também global, para mostrar que é possível proteger a privacidade de quem tem direito a essa privacidade ou o bom nome de quem tem direito a um bom nome, sem introduzir uma categoria tão ambígua.
Como você descreveria o estágio atual desse conflito? Já cresceu a consciência de que o jornalismo precisa ser defendido?
Há uma enorme consciência de que o jornalismo precisa seguir existindo sem essas ameaças. Mas é um tema em construção. É tema de moda, o que é mais grave. E existe um problema que é legítimo: muita gente se pergunta como controlar a divulgação de uma informação privada. É uma preocupação legítima, de gente que não tem nenhum interesse público e para quem está sendo um dano brutal o que está circulando na internet sem controle. Eu acredito que o importante é usar as ferramentas clássicas que serviram ao direito, sempre, para resolver os conflitos entre liberdade de expressão e intimidade, entre liberdade de expressão e bom nome, e estendê-las à internet, sem tomar decisões que possam afetar estruturalmente nem a imprensa nem o funcionamento da internet como a conhecemos hoje. É um desafio, que é preciso enfrentar, mas que não se irá resolver com o direito ao esquecimento. É uma categoria ruim para a solução desse desafio.
O Judiciário é o palco inevitável para decidir sobre o direito ao esquecimento?
Não, eu acredito que deva existir uma legislação que proteja a liberdade de expressão. E que estabeleça em quais casos excepcionais, com quais argumentos demonstrados, um juiz pode tomar a decisão de desindexar uma informação. Isso deveria estar numa lei precisa, que proteja a imprensa e os intermediários. E que estabeleça os casos limites, em que todos estaríamos de acordo que certa informação que não pode circular. Por exemplo, informação que afete a intimidade, a privacidade, a vida de crianças. Esse é um tipo de informação em torno da qual, creio, há um acordo pacífico, em nível internacional, de que ele pode ser desindexado. Essas diretrizes deveriam estar numa lei, para que o Poder Judiciário atue de acordo. Não se pode aceitar que um juiz esteja mais ou menos identificado com a liberdade de expressão ou entenda mais ou menos o valor da liberdade de expressão numa democracia. Como eu disse, o direito ao esquecimento é tão ambíguo que os juízes podem fazer qualquer coisa. Ele não existe na lei brasileira, ele não existe na Constituição brasileira, como não existe na lei e na Constituição de nenhum país de nossa região. Essa categoria não existe. E seu uso é perigosíssimo, justamente porque não existe e não foi adequadamente delimitado. A idéia do direito ao esquecimento como uma cláusula aberta legitima juízes a ordenar que qualquer informação seja apagada.

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