segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

O dia da morte de um grande jornalista brasileiro, Marcos Faerman

O dia 12 de fevereiro de 1999 caiu em uma sexta-feira, quando estava começando o carnaval no Brasil. Ao entardecer desse dia, quando também começava o shabat judaico, morreu ao entardecer o jornalista Marcos Faerman, no apartamento da rua São Carlos de Pinhal, em São Paulo, no qual morava junto com sua companheira, a historiadora Maria Aparecida Toschi Lomonaco, a Nina. Nessa hora, sem imaginar o que se passava tão longe, eu saía de minha casa em Porto Alegre, junto com minhas filhas e minha netinha, seguindo para o feriadão de carnaval na praia, em Capão da Canoa, no Rio Grande do Sul. No caminho eu ia ouvindo a cantora americana Withney Houston, no cassette do carro. Um imenso congestionamento na autoestrada, a Freeway, me fez chegar somente às 22 horas. Chuviscava quando cheguei no gramado da cabana canadense onde veraneava meu pai, para pegar as chaves da nossa casa. Ele saiu de casa na chuva e tão logo chegou ao meu lado, disse: "Tenho uma má notícia". Eu me lastimei imediatamente: "Não, o Marcão, não". Sim, era a notícia da morte de Marcos Faerman. 

Levei minhas filhas e a netinha de meses para a casa da praia, aqueci comida para elas, e parti de volta a Porto Alegre, para pegar meu cunhado e tratar de seguir para São Paulo. Não havia vaga em um vôo sequer. O jeito foi decidir partir de carro. As duas horas da madrugada peguei novamente a Freeway em direção a Santa Catarina. Parecia, naquela noite, que o Brasil inteiro tinha decido sair de carro para as praias. Até perto de Joinville foi um congestionamento só, com filas monumentais de carros, em uma BR 101 que estava em obras de duplicação. Parei apenas duas vezes para tomar cafezinho e uma Coca Cola, receita para ficar bem desperto. 

De Curitiba para São Paulo a estrada ficou livre. Quando comecei a me aproximar de São Paulo o celular do meu cunhado começou a tocar. Perguntavam onde andávamos, quando faltava para chegar, porque os administradores do Crematório de Vila Alpina queriam encerrar seu expediente. Marcos Faerman, que havia se reaproximado da religião judáica no fim de sua vida, inclusive estava fazendo curso de educação religiosa com  rabino, não quis ser enterrado nos ritos judáicos. 

Isso não impediu que o rabino Henri Sobel, seu amigo, comparecesse ao velório e fizesse rezas de despedida, com o caixão aberto. Foi-se o Marcão. Meu telefone silenciou, porque ele costumava me ligar no mínimo duas vezes ao dia. Nas tardes de domingo ou noite de quarta-feira ele ligava pedindo que eu colocasse o fone no alti-falante do rádio, para ouvir o jogo do Grêmio, quando não conseguia sintonizar em São Paulo as rádios de Porto Alegre em ondas curtas no seu Transglobe com uma enorme antena. 

Perdi meu amigo, meu amigo e meu tutor intelectual, a pessoa que havia me trazido para o jornalismo e que me dera tantas indicações de livros que eu deveria ler. Lembro que o primeiro desses livros recomendados foram crônicas de Ernest Hemingway, sobre temas variados, que ele enviava da Europa para jornais americanos. 

Quando fui para São Paulo, no começo da década de 70, quando explodiam as canções de Caetano Veloso na Tropicália, e quando todo dia tem uma ação armada das organizações terroristas de esquerda, e sempre prisões, Marcão me disse que um jornalista precisava ler muito, os grandes autores, para aprender a escrever. Para ele, o jornalismo era também literatura. Fiquei morando em sua casa em Vila Mariana, próximo da Avenida Paulista e também do Parque Ibirapuera. Na boca da rua morava o delegado Sérgio Paranhos Fleury. Na calçada da nossa casa toda noite tinha um carro da polícia paulista, com o radiotransmissor ligado, dando segurança à família do delegado do Dops. Eu passava a madrugada acordado, lendo, só conseguindo dormir ao alvorecer.

Fiz a revisão do texto, pontuação, etc... daquela que considero a melhor matéria escrita por Marcão. Chamava-se "Relato da destruição de uma família - O caso Bensadon". Marcão escrevia na pequena máquina portátil Olivetti datilografando com apenas dois dedos. Escrevia e reescrevia, ouvia-se o ruído do carro da máquina girando com a retirada de uma folha de papel, a lauda do jornal, virando a seguir uma bolota de papel. Ao final era preciso rever todo o seu texto, porque ele não tomava cuidados com grafia enquanto estava escrevendo. O poderoso na sua escrito era a história que estava sendo contada. E ela continha todos os detalhes sensíveis. 

Assim que foi para São Paulo trabalhar no Jornal da Tarde, Marcão se apaixonou pelo New Journalism americano e por seus grandes autores. Havia um jornalista-escritor em especial, que o fascinava intensamente: James Agee. Sábados eram dias especiais para o Marcão, dia de percorrer os "sebos" em busca de raridades. Eu ia junto com ele em muitas dessas expedições. Em uma delas ele me recomendou a compra de uma coleção inteira de "História da Civilização Ocidental", de Otto Maria Carpeaux. Em outra me recomendou as compras de "Os Lusíadas", de Luis Vaz de Camões, e "Dom Quixote", de Miguel de Cervantes. Eram os fundadores do português e do espanhol, me dia Marcão. E me fez ler, em espanhol, grandes autores pelos quais me apaixonei, é claro, de maneira irremediável: Jorge Luiz Borges, Ernesto Sabato, Augusto Roa Bastos, Mario Vargas Llosa e outros tantos. Um livro se tornou especial para mim, de cabeceira. o magistral "Sobre heroes y tumbas", de Sabato. 

Marcos Faerman também me levou a ler o escritor Jorge Semprun, quando ocorreu nosso rompimento com a Convergência Socialista (à qual não pertencíamos), que havia feito um processo de "entrismo" no Versus e tomado o jornal que ele havia criado, com minha participação. Semprun, um velho comunista espanhol, membro da direção junto com Dolores Ibarruri, a Pasionaria, roteirista de filmes de Alain Resnais, prisioneiro em campo de concentração nazista (experiência contada no livro "A longa viagem"), ao romper com o comunismo o fez com um doloroso livro de auto-crítica, chamado "A autobiografia de Federico Sanchez". Esse era o seu "nome de guerra" no Partido Comunista Espanhol. É um livro demolidor das utopias comunistas, razão pela qual os comunistas em todos os lugares o detestam. Mas é um livro revelador. 

Com a leitura de Semprun, não só de "A Autobiografia de Federico Sanchez", mas também de "Quel beau dimanche", sobre os campos de concentração soviéticos, o "gulag", no quais eram encerrados na Sibéria os adversários do regime, ou simplesmente pessoas suspeitas, por qualquer razão, comecei minha reconversão político-ideológica. O "entrismo" da Convergência Socialista, com a tomada do jornal, aconteceu em 1979. Nessa época os comunistas trotskistas brasileiros já ensaiavam entrar no futuro partido da "divindade local do proletariado", o líder sindical Lula, do ABC paulista. Sim, aquele mesmo que veio redundar nessa caricatura de corrupção atual. 

Nossa saída do Versus (enquanto ainda nos mantíamos na grande imprensa) trabalhando nos jornais do grupo Estadão (ele no Jornal da Tarde, eu em O Estado de S. Paulo) resultou no surgimento da revista Singular & Plural. E eu fiz, pela mesma editora que bancava a revista, os "Cadernos Trabalhistas". Ao sairmos do Versus, tivemos uma aproximação com o trabalhismo que estava tentando recriar o antigo PTB. Fomos os fundadores da secção de São Paulo, junto com Marcio Wohlers de Almeida, Ana Luisa Vianna, Teresinha Zerbini e Euzébio Rocha (antigo deputado federal que foi o autor do projeto de lei de criação da Petrobras, na década de 50). 

Mas, o interesse de Marcos Faerman sempre foi o jornalismo, a literatura, a aventura de contar uma história descobrindo a humanidade em seus personagens. Até hoje não há quem o iguale ou tenha seguido o seu modo de fazer jornalismo no Brasil. Talvez não vá mesmo surgir, porque a grande imprensa sofreu uma gigantesca alteração e está em franco processo de extinção. Nem poderia ser diferente, dominada por um esquerdismo moribundo. Ironia das ironias: no fim de sua vida Marcão tinha trabalhado na gestão malufista da prefeitura de São Paulo, na Secretaria de Cultura, onde cuidava do Patrimônio Histórico da principal cidade do País. E, decididamente, estava em franco afastamento da esquerda. Não viveu o suficiente para ver os seus (e os meus) antigos companheiros de organização comunista revolucionário do POC (Partido Operário Comunista) ascenderem ao poder junto com o bandido corrupto, lavador de dinheiro,. chefe da organização criminosa petista, e levarem o Brasil ao grande desastre da maior recessão econômica de todos os tempos. Marcão não se degradou com essa bandidagem, seguiu fiel à sua escolha pelo jornalismo e pela literatura. 

Marcos Faerman foi a pessoa mais despreendida que conheci na vida. Se alguém precisasse de uma ajuda, ele não vacilava. Ele não tinha apêgos materiais, a não ser por seus livros e discos. Se um amigo, ou muitos desses que se aproximam dizendo ser amigos, pedia para ele escrever um resenha sobre seu livro, Marcão escrevia, e sempre com palavras entusiasmadas de apoio, embora o sujeito fosse um rematado incompetente ou analfabeto. Jornalistas começando na profissão ou estudantes recebiam dele sempre a maior atenção e apoio, com ensinamentos precisos dados sem nada em troca. Era uma pessoa muito singular, com certeza, e tremendamente plural. 



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